Estreia de Spike Lee no roteiro e na direção, Ela Quer Tudo (EUA, 1986) foi rodado em apenas 12 dias e sem retakes – algo ousado e arriscado para um diretor iniciante.
O longa é uma típica obra underground com um prólogo apresetando uma citação do romance de Zora Neale Hurston chamado "Seus Olhos Viam Deus", escrito em 1937:
"Navios ao longe levam os desejos dos homens. Para uns, eles vêm com a maré. Para outros, navegam no horizonte sempre à vista, sem atracar, até que o espectador desvie o olhar, os sonhos mortos pela zombaria do tempo. Assim é a vida dos homens. Já as mulheres esquecem o que não querem lembrar e lembram tudo que não querem esquecer. O sonho é a verdade. Então elas agem de acordo com isso."
Em 2014, Lee admitiu numa entrevista seu profundo arrependimento por ter incluído a cena de estupro entre Jamie (Tommy Redmond Hicks) e Nola (Tracy Camilla Johns). "Foi totalmente estúpido. Eu era imaturo.", explica o diretor. "Fazia pouco caso de estupro e eu odeio não ter visto isso como o ato vil que é". A obra está na lista dos "1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer", de Steven Jay Schneider. Em 2017, foi adaptado para o formato de série, disponível na Netflix.
Abaixo, eu escolhi quatro cenas de Ela Quer Tudo para exemplificar a gramática audiovisual empregada. Há conceitos como decupagem, flashforward, inserções e plano-sequência. As cenas estão disponíveis em meu Twitter.
1) Nesta cena com 1'18'' de duração, temos dois planos interrompidos por uma inserção não diegética usada para apresentar o nome da personagem: Clorinda Bradford (Joie Lee). No primeiro corte, a câmera faz uma panorâmica à esquerda do quadro em busca de Clorinda, enquanto vemos o ambiente da cena: um sala pequena com estante de livros, uma poltrona e um contrabaixo acústico perfilado à esquerda. A personagem está de costas para a câmera com um máquina de costurar à frente dela. A câmera aproxima-se, de modo a enquadrar apenas ela e a máquina. Ela vira-se para a câmera, quebrando a quarta parede, e suspira. No segundo corte, ela fala diretamente para câmera em tom confessional sobre a relação dela com a protagonista do filme, Nola (Tracy Camilla Johns)). O diretor replicará esse recurso de quebra de quarta parede para apresentar todos os demais personagens.
2) Nesta sequência de 1'17'', decupada em sete planos, assistimos ao pesadelo de Nola em forma de flashforward. No primeiro plano, a câmera movimenta-se vagarosamente em direção à fechadura de uma porta. A maçaneta gira por diversas vezes. No segundo plano, mais aberto, a porta abre-se de onde saem três mulheres. No corte seguinte, em plano americano, essas três mulheres caminham em direção ao canto esquerdo do quadro. No quarto plano, Lee adota o contra-plongée dessas mulheres falando em tom acusatório. Corta-se rapidamente para um contraplano delas de costas, enquanto ao fundo vemos Nola deitada, dormindo numa cama. É um plano rápido, usado apenas para nos ambientar do contra-plongée empregado anteriormente: essas mulheres estão falando com Nola. Corta. Volta ao plano anterior, uma das mulheres acende um fósforo e aponta em direção à câmera, que nos remete ao plano subjetivo de Nola. Do fogo do fósforo, parte um fade abrupto para uma imagem em tela cheia de chamas aludindo à incêndio. No último corte, vemos Nola levantando-se da cama e gritando: "fogo!". Através de uma boa decupagem, o diretor consegue contar um terrível pesadelo.
3) A inserção diegética deslocada é empregada através de fotos still nesta sequência de 1'49'' no intuito de ilustrar o metrô como forma de deslocamento do personagem. Primeiro Jamie (Hicks) recebe a ligação de Nola, que o convence a ir visitá-la. A seguir, vemos 10 fotos still, a maioria desfocada, mostrando Jamie entrando e saindo de um vagão de metrô. No plano seguinte, Nola abre a porta para Jamie entrar.
4) O filme termina com este plano-sequência de 1'31''. A quebra da quarta parede mais uma vez é estabelecida: Nola fala com cumplicidade para a câmera, que a acompanha até a cama, onde ela deita-se. Em seguida, a câmera afasta-se centralizado a cama, as cobertas e as velas ao fundo. A curiosidade aqui é que Lee optou por começar e encerrar o longa com o mesmo plano: o início é matutino com Nola levantando-se da cama; o final é noturno, com Nola deitando-se.
(EUA, 1986)
1h30min
roteiro e direção Spike Lee
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